1.07.2009

Gabinete

“Piquenique! Piquenique” gritam as crianças pelo parque. Estão sozinhas a deambular pelo parque, a cantar e a sorrir, sem suspirar. “Piquenique! Piquenique!”. Vejo esta situação enquanto passo ao lado, dirigindo-me ao Gabinete. As criança correm de um lado para o outro, brincando às escondidas e à apanhada, penso que agora é a vez do João...ou se calhar não.
Fui chamado ao Gabinete para defender uma afirmação minha, que fora contestada na rua, há 3 dias atrás. Segundo o Gabinete eu não tinha quaisquer fundamentos para proferir tal afirmação, no meu ponto de vista eu tenho. Logo, existe um confronto de ideias e estas coisas costumam ser logo resolvidas, após propriamente registadas e documentadas pelo Departamento de Burocracia e dos Tecnocratas. Mas mais que isso, eu pretendo fazer-me ouvir e exercer os meus direitos.
Espero na fila, visto o meu fato preto e coloco o meu chapéu-de-coco, vestes obrigatórias a qualquer pessoa que deseje entrar no Gabinete. Olho para cima e o céu olha para mim, trocamos um olhar e ele segue a sua vida, eu coloco os fones nos ouvidos e começo a ouvir o disco que me deram. Necessito de o ouvir antes de passar para a fila.

“Saudações Senhor Homem, enche-nos de alegria ao proporcionar-nos o prazer da sua visita. Breve visita. Por favor tenha a atenção para não mexer em nenhum dos Regenerados, pois, como o seu nome indica, estão em processo de regeneração e qualquer elemento pertubador pode influenciar negativamente o seu crescimento como cidadão Regenerado. Tenha igualmente especial atenção para não escutar as palavras radicais de alguns dos possíveis rebeldes que proferem discursos anti-sociedade e que vão contra o bem-estar e paz dos outros cidadãos. Caso encontre algum, faça o favor de o indicar rapidamente a um dos sentinelas policiais que esteja consigo, pode fazer isso facilmente clicando no botão no seu pulso direito.Bom Dia! “Esta mensagem foi aprovada pelo Sistema de Regulação do Povo

No fim da mensagem já me encontro perto do Gabinete, vejo um dos tais “agitadores”, discursa:

“Abre os olhos meu! Abre os olhos! Tu sabes que és só mais uma vaca a caminho do matadouro meu! Tu és um escravo! Um escravo ouviste? O que pensas que são todas estas instituições em prol da tua “segurança”? Eles não querem saber de ti nem de ninguém... eles...eles controlam-te meu! Abre os olhos!”Decido ignorá-lo, sinto empatia pelo sujeito mas o homem atrás de mim não, rapidamente clica no botão e dois sentinelas policiais levam o “agitador”. Não aguento a decisão deste meu colega cidadão e pergunto-lhe:

-Era necessário?
-Está a falar comigo? –pergunta ele.
-Estou. Era necessário?
-Se calhar. Era seu amigo?
-Não. Não o conhecia, mas sei que ele não estava a fazer mal nenhum.
-Pertubava a ordem pública rapaz. Isso é mal nenhum? Você não sabe que estes sujeitos não são humanos?
-Como assim? Não são humanos...
-Sim, meu amigo. Não se iluda com os seus discursos “humanos”. Aquilo não é “humano”. Aquilo é a própria voz do Diabo, incitando-nos a lutarmos entre nós em vez de garantir a segurança.
-Perco-me... o que é humano então?
-Tranquilidade.
-Aborrecimento? Solidão. Vergonha.
- Regras! Conduta! Status quo! Tudo é humano nisso. O resto é mau. Aprenda comigo, jovem. Não duro sempre.
- Você é humano.
-Claro!
-E eu?
-Decerto.
-Porquê? Como?
-Ele criou-o. Você assinou o contrato?
-Eu não assinei...
-Não faz mal nenhum, por acaso tenho aqui um exemplar, quer assinar?
- Eu não saberia por onde começar...
-Comece pelo início e comece-o “leve e fresco, como o novo refrigerante Sumus!”. Siga-me até aquela secretária.
- Ela não estava ali antes....
-Não precisávamos dela antes, porque estaria ali? Mas agora sim! Venha! Venha!
- Pode ser. Mas continuo a dizer que não devia ter chamado as sentinelas policiais.
-Não deveria...poderia...quiçá...talvez...o que foi, foi! O que não foi, nunca existiu! E mesmo assim há coisas que foram e não o são, ou que nunca foram...mesmo sendo. Mas a hora da filsofia é só daqui a umas horas, hoje é sobre Hobbes e as razões porque precisamos de Paz!
-Sobre Hobbes... penso que me perdi na sua exposição.
-Tem tempo até ao Gabinete não tem?
-Não posso dizer com certeza...
-Tem sim! Com este contrato você vai ser humano toda a vida!
-Mas já não sou?...
-Você é neste momento, o que nós gostamos de chamar de uma carapaça vazia sem-alma. É somente após a assinatura deste contrato que você recebe a sua alma, num prazo de 7-12 dias. Você compromete-se a pagar o empréstimo desta nossa alma a si até ao fim da sua vida com uma taxa de juro fixa. Ok?
-Penso que sim.
-Ganha em troca uma alma, uma personalidade e inclusive um sentido na vida!
-Posso ver qual é o meu?
-Quer saber qual é o seu sentido da vida?
-Foi isso que perguntei.
-Bem, para isso tem que remeter o formulário azul celeste para o nosso Departamento de Coisas da Alma.
-Quando?
-Quando?...
-Quando é que sei o meu sentido da vida?
-No momento em que tivermos a certeza que o cumpre.
-Você não está a fazer sentido! Isto é confuso... se tenho direito a um sentido de vida...e só o recebo quando vocês sentirem que eu vou cumpri-lo... vocês já sabem qual é o meu sentido e eu não tenho opção?
-Assine aqui em duplicado.
-Sim senhor. - meto o contrato na minha pasta e ando devagarinho para o Gabinete, onde encontro uma sala vazia, apenas com uma mesa. E é lá que fico à espera.

E enquanto fico à espera, vejo um sinal a dizer “ Sente-se”...pondero em tudo, no que me aconteceu até cá chegar e na sala vazia...sem portas nem janelas e apenas uma mesa.Aproximo-me da mesa, reparo no seu toque de madeira, no objecto que é e no que representa. Esqueço essa parte e sento-me nela e fico à espera que me oiçam, mas de facto..e já deveria ter percebido isso, é que ninguém me vem ouvir, ninguém vem falar comigo e explicar-me nada. O que afirmei na rua não tem qualquer interesse. Não há ninguém por detrás da mesa e a verdade é essa. Só uns vendedores no corredor.

1.05.2009

APENDICITE

Desafio os não preguiçosos a descobrir a definição de apêndice. Ah, e já que estão numa de levantar o rabo procurem também a definição de design. "Espera lá! Apêndice? Design?"

Como eu também sou preguiçoso, e o dicionário é de todos os clássicos o que mais desprezo, gosto de inventar as minhas próprias definições, significados e aplicações das palavras. Assim posso dizer que a política é um apêndice, por exemplo, ou que o socialismo de Marx tem um design interesante. E quem me pode corrigir? Ou melhor, quem se dá ao trabalho? Adiante.

Diz-se que a invenção surge aquando da necessidade. Não necessariamente (trocadilho de merda). Na sociedade presente há muita coisa que usamos não por necessidade, mas por culto ao apêndice. Os nossos carros, os nossos telemóveis, os nossos portáteis, as nossas mochilas, as nossas roupas, as nossas casas. Tudo aquilo que antes surgia para desempenhar uma função específica e importante, fundamental e acima de tudo de maneira funcional através da forma funcional (são coisas diferentes), serve agora como símbolo do nosso indivíduo, da nossa diferençiação em relação aos outros, de elemento que nos distingue e que reflecte "o nosso estilo pessoal", quando no fundo o que fazemos é copiar o estilo de algum ou alguma modelo que vemos nos anúncios de revistas e televisão. Desejamos a mesma roupa, os mesmos telemóveis, os mesmos carros, queremos todos o mesmo, na desesperada e ilusão de que seja esse item que só nós teremos e mais ninguém poderá ter que nos irá distinguir dos outros, elevar-nos à condição de único e inagualável. Assim, para mim, nada distingue o primeiro classificado da prova dos 100 metros do último classificado, que chegou 4 segundos atrás. Ambos correram pelo mesmo. Vejamos se me contradigo mais à frente.

Quase tudo o que possuímos, e absolutamente tudo o que desejamos são apêndices. Extensões de nós próprios e das nossas pretensas identidades, sejam elas quais forem. Se uma invenção, como o automóvel ou o telemóvel fossem apenas isso, um veículo eficaz de transporte, um aparelho de comunicação sem fios, essas invenções não teriam sobrevivido muito tempo. Depois do essencial estar minimamente satisfeito, como a necessidade de deslocação rápida e da comunicação remota, os responsáveis pela comercialização de tais aparelhos necessitam de inverter a função dessas invenções, para que a demanda destas aumente e continua a existir. Um carro já não é um veículo de transporte, mas um símbolo de virilidade, posição social e estilo. Os nossos telemóveis passaram a ser câmaras de fotografar e filmar, consolas de jogos, browsers de internet, pocket PC's, um aglomerado de funções que não funcionam. Já não queremos nada que traga e faça apenas aquilo que precisamos que faça a um preço proporcional. Deslocarmo-nos cómoda e rapidamente a baixo consumo enérgico, receber e efectuar chamadas, receber e mandar mensagens de texto, não é isso de todo o que procuramos num carro ou num telemóvel. Mas era para isso que eles serviam, foi para essa função que foram criados, desenhados.

O que me leva ao design (aproveito a proximidade das palavras, e das palavras apenas). Design não é desenho. Resposta errada, abre-se o alçapão para o poço da ignorância, adeus sua besta, que caias de fuça! Design não é estética. Design é ética. É conceber a melhor solução funcional, desde o processo de produção ao da distribuição, uso e manutenção. Fazer algo com benefício de toda a humanidade em mente.  Nada mais. E isso aplica-se a tudo. Os carros de hoje não são funcionais. Não são práticos, não são económicos, não são duráveis, não são eficazes, não são ecológicos, não são recicláveis, não são automóveis. O mesmo para os telemóveis. Mas isto são só exemplos. A política tem um mau design, não funciona, não desempenha a função a que se propõe, não resolve problemas, e não é ética (ética não é aquilo que se aprende na universidade). Resumindo, aquilo que tu tanto admiras pelo seu "fantástico" design é totalmente desprovido do mesmo e, por consequência, tudo menos fantástico. O que é fantástico é a capacidade do ser humano de chapinhar no esterco e de regozijar enquanto o faz.

No próximo post explicarei porque desisti de ser arquitecto.